Opinião: Não existe mercado de capitais sem regulador 'forte'

28/02/2024

Corpo Técnico da CVM iniciou mobilização em prol da valorização das carreiras da Autarquia

 

No caso das companhias com valores mobiliários negociados junto ao público, os problemas decorrentes do conflito de agência ultrapassam a relação "companhia/sócio", demandando a intervenção do Estado por meio da criação de uma agência reguladora; no caso brasileiro, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM). De fato, uma solução de mercado, sem qualquer regulação, dificilmente atenderia às necessidades dos próprios participantes do mercado.

A existência de assimetria de informação não permite que os investidores separem “o joio do trigo”, em razão da seleção adversa, sendo que eles também correm o risco de expropriação pelos administradores (controladores) em razão do problema do risco moral.

Neste ambiente de conflito e assimetria, provedores de capital buscam uma “proteção de preço” (prêmio) para compensar estes riscos, diminuindo o preço que estão dispostos a pagar pelos valores mobiliários. A consequência natural é um aumento do custo de capital das companhias e igualmente uma redução da liquidez do mercado de capitais.

Por outro lado, quanto mais protegidos os investidores se sentirem, mais propensos a financiar as empresas, o que expande o tamanho de um mercado de capitais.

Neste contexto, note-se a necessidade contínua de aprimoramento do mercado de capitais com vistas a aumentar o número de emissores de valores mobiliários e investidores no Brasil. Até porque ele é instrumento essencial para o financiamento da atividade empresarial no nosso país.

Contudo, a flexibilização e a desburocratização de normas e regras visando ampliar o escopo e o alcance do mercado não significa que devamos “enfraquecer” o nosso órgão regulador. Ao contrário, não há mercado de capitais líquido e abrangente sem regulador forte. Veja-se, por exemplo, o caso dos Estados Unidos, onde a Securities Exchange Commission (SEC) exerce papel fundamental no maior mercado de capitais do mundo.

De fato, diversas são as pesquisas na área do “Law and Finance” que demonstram que o desenvolvimento do mercado de capitais está diretamente relacionado à proteção dos direitos dos investidores.

E a proteção destes direitos não diz respeito apenas à existência de leis e normas para disciplinar seu funcionamento. Ao contrário, ela depende fundamentalmente do enforcement realizado pelo órgão regulador. Afinal, lei sem punição é mero conselho. Boas leis são aquelas que são fiscalizadas.

No caso específico do Brasil, a adequada proteção aos investidores está no cerne da criação da própria CVM, conforme expressamente descrito na Exposição de Motivos nº 196, de junho de 1976, que encaminhou à Presidência da República os projetos de reforma da Lei das S.A. e da Lei de Mercado de Capitais.

  • “4. O Projeto visa basicamente criar a estrutura jurídica necessária ao fortalecimento do mercado de capitais de risco no País, imprescindível à sobrevivência da empresa privada na fase atual da economia brasileira. A mobilização da poupança popular e o seu encaminhamento voluntário para o setor empresarial exigem, contudo, o estabelecimento de uma sistemática que assegure ao acionista minoritário o respeito a regras definidas e equitativas, as quais, sem imobilizar o empresário em suas iniciativas, ofereçam atrativos suficientes de segurança e rentabilidade.”

Desde então, diversas foram as alterações regulatórias que aprimoraram a estrutura do mercado de capitais brasileiro. Atualmente, inclusive, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei nº 2.925/23 – com proposta de alterações tanto na Lei nº 6.385/76 quanto na Lei nº 6.404/76 – o qual tem como objetivo adequar a legislação brasileira às práticas internacionais, em linha com as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Contudo, as alterações legislativas, por melhores que sejam – quando realizadas de forma isolada – não terão o condão de destravar o potencial que nosso mercado de capitais possui de contribuir de forma significativa para a economia. Ao contrário, precisamos fortalecer o próprio órgão regulador, dando-lhe condições para realizar a fiscalização do mercado de forma adequada. Investimentos em tecnologia e principalmente em pessoal tornam-se necessários. Afinal, o capital intelectual, as pessoas, são o principal ativo do órgão regulador.

Registre-se que no último dia 19 de fevereiro, os servidores da CVM iniciaram uma mobilização em prol da valorização das carreiras da Autarquia, a 2ª Fase da Operação Padrão. Neste contexto – dada a importância deste corpo técnico e do Regulador para o adequado funcionamento do nosso mercado de capitais – torna-se fundamental o diálogo com o governo federal, bem como a busca por uma solução consensual.

*Fernando Dal-Ri Murcia. Professor do Departamento de Contabilidade e Atuária da FEA/USP e Membro do Comitê Brasileiro de Pronunciamentos de Sustentabilidade.

 

Fonte: Valor Investe